eHá algumas semanas, publicamos a entrevista que fizemos com Dandara Luigi, uma das autoras do livro Antiespecismos Subversivos: Construções a partir das dissidências, publicado pela editora brasileira Ape’ku em 1º de novembro de 2023. Desta vez, contamos com o pensamento subversivo de Mar Revolta.
Mar é travesti sapatão não binária, desistente da espécie, tatuadora (@vintetrestattoo), educadora climática e idealizadora do podcast Revolta Climática. Militante ecossocialista pelo Subverta (@subvertamos) e antiespecista pelo C.A.V.A.L.O. (Coletivo Anticapitalista por um Veganismo Acessível e Livre de Opressão – @coletivocavalo). Graduada em Engenharia Mecatrônica pela Escola Politécnica da USP, mestra em Engenharia Mecânica pela TU-München. Também concluiu os cursos de extensão em Emergência Climática (52h) e Limites Planetários, Colapso Ambiental e Antropoceno (60h) pela Universidade Estadual do Ceará. Instagram: @mar.revolta.
Proximamente contaremos com outres autores que participaram com seus textos nesta importante contribuição ao pensamento antiespecista desde uma perspectiva decolonial, anticolonial ou, seguindo ao Bispo dos Santos, contracolonial. O livro está escrito em português e você pode encontrá-lo no site da editora e na versão Kindle. (Entrevista en castelhano)
Antropología de la Vida Animal: No livro Antiespecismos Subversivos, o termo “Veganismo” é interpelado, visto que está ligado a propostas baseadas no consumo e no mercado, propondo outros veganismos decoloniais ou até mesmo a possibilidade de abandonar o termo. Que propostas de veganismos decoloniais, negros, populares, etc. estão acontecendo no Brasil, a partir de sua própria vivência, além deste livro que é um belo exemplo?
Mar Revolta: Acredito que muitas dessas iniciativas são citadas no livro (Movimento Afro Vegano, Vegano Periférico, C.A.V.A.L.O., etc), mas quero acreditar que existem diversas propostas de veganismos decoloniais, negros e populares espalhadas pelo Brasil com as quais ainda não tive contato. Uma organização que não posso deixar de citar é a ANTAR – Poder Popular Antiespecista. A ANTAR foi o primeiro coletivo onde militei, onde aprendi o que era militância, onde conheci o veganismo popular e aprofundei meus estudos sobre antiespecismo e emergência climática. Porém, por divergências políticas e éticas, não faço mais parte da organização.
AVA: Você tambem fala de ter mobilizado o termo duma forma mais estratégica entre pessoas que se identificam como veganas e em espaços embranquecidos, que respostas ou reações está encontrando nesses espaços?
MR: Sinceramente, percebo meus caminhos divergindo cada vez mais destes espaços embranquecidos, mas não costumava ver reações ao termo «veganismo» e sim ao termo «antiespecismo». As reações eram variadas, mas eu já tinha o costume de mobilizar o debate antiespecista desde antes de começar a abandonar o termo «veganismo», então pouca coisa mudou, pra falar a verdade. O que ficava muito claro é que quando eu falava que era «vegana há 9 anos» eles levavam mais a sério o que eu falava depois.
AVA: O texto que apresenta no livro foca no agro, mostrando justamente que a libertação animal vai muito além de deixar os animais fora do consumo, mas esse panorama devastador, feito de práticas fortemente inseridas no cotidiano, pode chegar a ser abrumador no sentido de sentir que pouco pode ser feito. Sua aposta é pela coletividade, mas também as alianças frequentemente derivam em disputas, em fragmentação nos movimentos sociais. Como você entende e vive a luta antiespecista no seu cotidiano, na sua identidade, entendendo que esta está atravessada por tantas outras? Falo do seu cotidiano e sua identidade num sentido relacional porque no inicio do texto você fala de quanto o antiespecismo trans.formou seu mundo.
MR: Eu acredito que as alianças frequentemente derivam em disputas e fragmentação dos movimentos sociais porque as formas que conhecemos de aliançar também são atravessadas por uma subjetividade colonial. Muitas vezes seguimos um modelo monogâmico, onde até mesmo as alianças coletivas, entre organizações, são entendidas como exclusivas e «para sempre». Reaprender a aliançar e contracolonizar a maneira como nos relacionamos (individual e coletivamente) também é parte do processo de construção de mundos outros. A minha aposta é pela descolonização dos afetos (Geni Núñez), pelas alianças selvagens (Anahi Gabriela Gonzalez e Martina Davidson) e, claro, pela desistência da espécie.
AVA: Você faz parte do C.A.V.A.L.O. (Coletivo Anticapitalista por um Veganismo Acessível e Livre de Opressões). Pode nos contar como surge o coletivo, em que atividades estão envolvides e que alianças com outros coletivos estão desenvolvendo (se for o caso)?
MR: A semente desse coletivo surge em 2019, no Encontro Nacional da União Vegana de Ativismo (UVA), uma tentativa de articular nacionalmente pessoas interessadas em um veganismo diferente desse Veganismo hegemônico branco e liberal, bastante exemplificado pela Sociedade Vegetariana Brasileira (SVB). Depois do encontro, as pessoas começaram a se mobilizar em suas cidades para analisar a possibilidade de criar coletivos local e, no primeiro semestre de 2020, nasce o C.A.V.A.L.O. No momento, nossa principal atividade tem sido a tradução para o português do livro Aphro-ism, das irmãs Ko. Além da UVA, também somos próximes do Subverta – Coletivo Ecossocialista Libertário e da Bancada Feminista do PSOL e estamos abertes a aliançar com outros coletivos!
AVA: No ultimo número da RELECA apresentou um texto titulado “Muito mais-que-humana: a desistência da espécie enquanto práxis decolonial”. Pode deselvolver um pouco a questao, os motivos para reivindicar a desistência de especie, da humanidade?
MR: A melhor linha didática que eu encontrei para embasar a desistência da espécie é justamente essa poesia-manifesto-automitobiografia, portanto convoco todes a procurarem o dossiê Antiespecismo e Decolonialidade da Revista Latinoamericana de Estudos Críticos Animais para lê-la na íntegra, e explorarem as referências bibliográficas.
Mas para elaborar um pouco sobre os principais pontos: acredito que o ponto de partida de um antiespecismo verdadeiramente comprometido com a decolonialidade precisa reconhecer o artifício dicotômico através do qual operam diversas opressões, como fluentes x gagues; magros x gordes; brancos x pretes; homens x mulheres; cis x trans; humanos x animais (é uma escolha proposital usar a primeira parte destes binarismos no masculino e a segunda em linguagem não-binária). Em todos estes casos, estabelece-se uma relação hierárquica exclusiva entre a parte «ideal» e a parte «deficiente». Em nenhum destes casos, no entanto, a parte «ideal» é objetivamente «melhor» que a parte «deficiente». Corpos fluentes não são melhores que corpos gagos, isso é capacitismo. Corpos magros não são melhores que corpos gordos, isso é gordofobia. Corpos com pênis não são melhores que corpos com vulva, isso é machismo. Corpos brancos não são melhores que corpos negros, isso é racismo.
O que todas essas partes «ideais» tem em comum é que elas estão mais próximas do Ser Humano™ ideal, i.e. homem cis-hétero branco magro rico e sem deficiências do norte global. A ideia de «humano» e «humanidade» não é meramente biológica (pelo menos eu não acho que teria o mesmo efeito nas campanhas eleitorais se os candidatos dissessem «queremos uma sociedade mais homo sapiens»). Humanidade é um conceito construído socio-historicamente e carrega valores e ideais completamente atravessados pela colonialidade branca. Compreender a construção social da espécie é imprescindível se queremos tensionar as fronteiras coloniais e nos questionar sobre qual mundo precisamos que acabe e quais mundos queremos construir.